domingo, 8 de julho de 2018

O transplante de fezes ainda não é um tratamento viável para o diabetes

No dia 6 de julho de 2018, o jornal Zero Hora publicou a reportagem O cocô pode salvar vidas: saiba o que é o transplante de fezes. Segundo o texto, “Porto Alegre sediou o primeiro transplante fecal da América Latina para o tratamento do diabetes”. A pessoa que se submeteu ao transplante, médico neurologista e professor universitário, disse que queria “provar a segurança do procedimento e demonstrar a dinâmica disso para que pudesse ser oferecido a pacientes de casos extremos”. Em outro trecho, o profissional disse que seu “perfil glicêmico melhorou significativamente nas primeiras horas” e que seu “sono nos dois últimos dias estava quase normal”. A maneira como o texto foi escrito, aliado ao grande entusiasmo do médico que se submeteu a experiência, pode gerar confusão no público leigo. A seguir esclarecemos alguns pontos sobre o uso do transplante de fezes para o tratamento do diabetes.

Imagem da reportagem de Zero Hora sobre transplante de fezes

1- Existem evidências de que o transplante do microbiota fecal possa ser usado para o tratamento do diabetes?
É verdade que existem estudos sobre a manipulação das bactérias que habitam nosso intestino possa ser alvo terapêutico em doenças metabólicas como o diabetes. No entanto, quase totalidade destas pesquisas são em modelos animais (ratos). Para o tratamento de doenças metabólicas, existem pouquíssimos estudos em humanos publicados até hoje. Um deles contou com apenas 18 participantes e teve apenas 6 semanas de duração. Pacientes obesos que receberam transplante fecal de indivíduos magros apresentaram melhor sensibilidade periférica a insulina comparados ao grupo controle. E só! O mesmo grupo de pesquisadores avaliou esta estratégia em 38 homens obesos, desta vez por 18 semanas. Aumentando o tempo de observação, percebeu-se que a melhora na sensibilidade à insulina foi apenas transitória, em outras palavras, o efeito do tratamento é fugaz. Estes achados podem ser considerados como geradores de hipóteses, isto é, precisam de estudos maiores para poder comprovar eficácia e benefício a longo prazo. Além disso, até o momentos, não há relatos de melhora na qualidade de vida ou melhora do sono. Outros achados importantes como prevenção de complicações típicas do diabetes como doença do fundo do olho, doença renal ou doenças do coração também não podem ser avaliados em estudos pequenos e de curta duração.

2- Como se prova segurança e eficácia de um tratamento?
Ao contrário do que a reportagem possa sugerir, o fato da técnica ser relativamente simples e ter dado certo em um único caso, não significa que o procedimento seja seguro ou eficaz. A maneira cientificamente correta de fazer esta avaliação é através de estudos randomizados em número suficientemente grande de pacientes seguidos por tempo suficientemente longo para poder avaliar se o tratamento de fato funciona e de fato não faz mal. Só comparando dois grupos - um exposto e outro não exposto ao tratamento – sorteados de maneira aleatória, conseguimos calcular se o efeito positivo de um tratamento é de fato real e não foi causado por outros motivos. No caso da reportagem, a melhora referida pelo médico poderia ter acontecidos pelo preparo do intestino, mudança na alimentação ou nas atividades diárias, ou por outro fator desconhecido e não aferido.

3- O transplante de fezes pode ser oferecido como opção terapêutica a “pacientes de casos extremos”?
Fora do ambiente de pesquisa devidamente regulado por um Comitê de Ética, o transplante fecal ainda NÃO é opção para o tratamento de doenças metabólicas. Oferecer procedimento experimental, isto é, sem comprovação científica robusta é no mínimo eticamente reprovável, já que pode confundir pessoas fragilizadas por uma doença crônica e induzi-las a se submeterem a tratamento sem garantia de eficácia e de segurança.

Referências:
1 - Vrieze A, Van Nood E, Holleman F, Salojärvi J, Kootte RS, Bartelsman JF, Dallinga-Thie GM, Ackermans MT, Serlie MJ, Oozeer R, Derrien M, Druesne A, Van Hylckama Vlieg JE, Bloks VW, Groen AK, Heilig HG, Zoetendal EG, Stroes ES, de Vos WM, Hoekstra JB, Nieuwdorp M. Transfer of intestinal microbiota from lean donors increases insulin sensitivity in individuals with metabolic syndrome. Gastroenterology. 2012 Oct;143(4):913-6.e7. doi: 10.1053/j.gastro.2012.06.031. Epub 2012 Jun 20.
2 - Kootte RS, Levin E, Salojärvi J, Smits LP, Hartstra AV, Udayappan SD, Hermes G, Bouter KE, Koopen AM, Holst JJ, Knop FK, Blaak EE, Zhao J, Smidt H, Harms AC, Hankemeijer T, Bergman JJGHM, Romijn HA, Schaap FG, Olde Damink SWM, Ackermans MT, Dallinga-Thie GM, Zoetendal E, de Vos WM, Serlie MJ, Stroes ESG, Groen AK, Nieuwdorp M. Improvement of Insulin Sensitivity after Lean Donor Feces in Metabolic Syndrome Is Driven by Baseline Intestinal Microbiota Composition. Cell Metab. 2017 Oct 3;26(4):611-619.e6. doi: 10.1016/j.cmet.2017.09.008.

Dr. Mateus Dornelles Severo
Médico Endocrinologista
CREMERS 30.576 - RQE 22.991

Dr. Rafael Selbach Scheffel
Médico Endocrinologista
CREMERS 30.011 - RQE 19.512

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