domingo, 25 de agosto de 2019

Qual o risco de cortar derivados lácteos da dieta?

O cálcio é um nutriente essencial para o esqueleto em todas as fases da vida. Em adultos, a massa total de cálcio é de aproximadamente 1.000 g, das quais 99% estão localizados na porção mineral do osso sob a forma de cristais de hidroxiapatita. O restante localiza-se no sangue, no líquido extracelular e nos tecidos.  A concentração de cálcio no líquido extracelular é mantida dentro de um intervalo relativamente estreito devido à importância deste íon para várias funções celulares, incluindo a divisão celular, integridade da membrana plasmática, secreção de proteínas, contração muscular, excitabilidade neuronal, metabolismo do glicogênio e coagulação.
A taxa de absorção intestinal do cálcio varia conforme a faixa etária, sendo 60% no recém-nascido, 50% na gestação e 34% na puberdade. Em indivíduos adultos, se 1.000 mg de cálcio forem ingeridos da dieta, aproximadamente 200 mg serão absorvidos. Para suprir as necessidades diárias, é recomendado o consumo de 1.000 a 1.200 mg de cálcio elementar todos os dias. Considerando as fontes disponíveis de cálcio alimentar (tabela 1), é muito difícil atingir esta meta sem o consumo de leite e/ou derivados. É possível calcular a ingestão de cálcio individual acessando: https://www.iofbonehealth.org/calcium-calculator

Tabela 1 - clique para ampliar
Por iniciativa da International Osteoporosis Foundation (IOF), para avaliar o consumo alimentar de cálcio em diferentes lugares do mundo, foi realizado um estudo com dados de 74 países (figura 1). Neste estudo, a média de cada país de consumo de cálcio variou de 175 a 1.233 mg/dia, sendo os menores valores observados em países da América do Sul, Ásia e África. Apenas países do norte europeu apresentaram a média recomendada de consumo de cálcio alimentar (superior a 1.000 mg/dia).

Figura 1 - clique para ampliar
Tipicamente, como resultado do processo de remodelamento ósseo, cerca de 500 mg de cálcio são removidos do esqueleto adulto todos os dias e uma quantidade similar é incorporada ao tecido ósseo. As recomendações de consumo de cálcio foram estabelecidas visando suprir esta necessidade mínima, considerando a absorção limitada de cálcio no trato gastrointestinal. A ingestão insuficiente de cálcio resulta em menor absorção, menor concentração de cálcio ionizado na circulação e maior secreção de paratormônio, um potente agente que estimula a reabsorção óssea. Em outras palavras, a restrição crônica de cálcio alimentar leva à mobilização de cálcio do esqueleto. Essa elevada taxa de remodelação causa perda óssea e representa um fator de risco independente para fraturas. Por outro lado, o consumo adequado de cálcio na dieta, geralmente 1.000 mg/dia ou mais, reduz a taxa de remodelação óssea em até 20% em mulheres e homens mais velhos, influenciando positivamente a densidade mineral óssea. Este efeito positivo é ainda mais importante na adolescência, período em que aproximadamente 40% da massa óssea é adquirida.  
Dessa forma, o cálcio é fundamental para desenvolvimento e manutenção da rigidez e força do esqueleto. Quando a ingestão de cálcio se torna insuficiente para as inúmeras funções que este íon exerce no organismo, mecanismos compensatórios acabam por suprir estas necessidades, reabsorvendo excessivamente o cálcio do esqueleto e acarretando a redução da massa óssea e aumento do risco de fraturas. 

Referências:
1. Vautour L e Goltzman D. Regulation of Calcium Homeostasis. In Primer on the Metabolic Bone Diseases and Disorders of Mineral Metabolism 9º edition (ASBMR) 2019. https://www.iofbonehealth.org/osteoporosis-musculoskeletal-disorders/osteoporosis/prevention/calcium/calcium-content-common-foods
2. Ross AC, Manson JE, Abrams SA, Aloia JF, Brannon PM, Clinton SK, Durazo-Arvizu RA, Gallagher JC, Gallo RL, Jones G, Kovacs CS, Mayne ST, Rosen CJ, Shapses SA. The 2011 report on dietary reference intakes for calcium and vitamin D from the Institute of Medicine: what clinicians need to know. J Clin Endocrinol Metab. 2011; 96(1):53-8.
3. Balk EM, Adam GP, Langberg VN, Earley A, Clark P, Ebeling PR, Mithal A, Rizzoli R, Zerbini CAF, Pierroz DD, Dawson-Hughes B; International Osteoporosis Foundation Calcium Steering Committee. Global dietary calcium intake among adults: a systematic review. Osteoporos Int. 2017; 28(12): 3315–3324.
4. Chiodini I, Bolland MJ. Calcium supplementation in osteoporosis: useful or harmful? Eur J Endocrinol. 2018;178(4):D13-D25. 
5. Weaver CM, Gordon CM, Janz KF, Kalkwarf HJ, Lappe JM, Lewis R, O'Karma M, Wallace TC, Zemel BS. The National Osteoporosis Foundation's position statement on peak bone mass development and lifestyle factors: a systematic review and implementation recommendations. Osteoporos Int. 2016; 27:1281-1386.

Dra. Tayane Muniz Fighera
Médica Endocrinologista com área de atuação em Densitometria Óssea
CRM-RS 32.014 - RQE 27.144 e 28.021

Texto revisado pelo Departamento de Metabolismo Ósseo e Mineral em agosto de 2019.

domingo, 4 de agosto de 2019

Diabetes mellitus tipo 2: doença com potencial de cura?

Desde meados da década de 90, tem-se postulado que o diabetes tipo 2, doença até então considerada crônica e de curso progressivo, poderia ser revertida após a cirurgia bariátrica, hipótese levantada pelo cirurgião americano, Dr. Walter Pories, em seu artigo intitulado: “Who would have though it? An operation proves to be the most effective therapy for adult-onset diabetes mellitus” que mostrou melhora glicêmica significativa ou remissão da doença em 83% dos pacientes submetidos ao procedimento.



Define-se remissão do diabetes como a obtenção de níveis glicêmicos que não preenchem critérios para diabetes, na ausência de terapia farmacológica e com duração superior a 1 ano. Ainda, a remissão pode ser parcial, quando os níveis de hemoglobina glicada* (A1c) são inferiores a 6,5% e a glicemia de jejum entre 100 a 125 mg/dl e completa quando ocorre restauração à normoglicemia (A1c inferior a 5,7% e glicemia de jejum abaixo de 100 mg/dl).
Conforme metanálise publicada em 2009, com inclusão de 621 estudos e aproximadamente 5000 pacientes com diabetes tipo 2, 80% dos pacientes obtiveram remissão completa da doença após a realização do bypass gástrico, tipo de cirurgia bariátrica mais comumente realizado.
Mais recentemente, no trial Diabetes Remission Clinical Trial (DiRECT), estudo desenvolvido para avaliar o efeito da perda de peso sobre as taxas de remissão do diabetes em indivíduos com menos de 6 anos de doença, dos 149 pacientes que receberam uma dieta hipocalórica, 46% alcançaram remissão em 1 ano, chegando a 86% entre aqueles com perda de peso igual ou superior a 15 kg!
Em março deste ano, foram publicados os resultados do seguimento deste estudo sobre o efeito da perda e manutenção do peso e a durabilidade da remissão do diabetes. Aproximadamente um terço dos pacientes mantiveram-se em remissão ao final de 2 anos e, dentre aqueles com perda igual ou superior a 15 kg, a taxa foi de 70%. Os resultados do DiRECT demonstram que o diabetes tipo 2 é uma doença potencialmente reversível e que a chance de remissão aumenta proporcionalmente à perda de peso obtida. Da mesma forma, a reversibilidade da doença está intimamente relacionada à manutenção do peso perdido no médio e longo prazo.
O mecanismo associado à melhora glicêmica obtida com a restrição calórica parece estar relacionado à redução da deposição de gordura ectópica no fígado e no pâncreas, levando à redução da resistência à ação da insulina no fígado e à reversão da disfunção das células beta-pancreáticas, mecanismos envolvidos no surgimento do diabetes tipo 2 em indivíduos geneticamente predispostos.
Portanto, indivíduos com diagnóstico recente de diabetes tipo 2, usualmente com duração inferior a 6 a 8 anos, apresentam elevada probabilidade de remissão da doença se submetidos a um programa de perda e manutenção do peso.

*Hemoglobina glicada (A1c) – corresponde à média da glicemia séria dos últimos 3 meses

Referências:
1. How do we define cure of diabetes? Diabetes Care. 2009 Nov; 32(11):2133-5.
2. Primary care-led weight management for remission of type 2 diabetes (DiRECT): an open-label, cluster-randomised trial. Lancet 2018; 391: 541–51.
3. Durability of a primary care-led weight management intervention for remission of type 2 diabetes: 2-year results of the DiRECT open-label, cluster-randomised trial. Lancet Diabetes Endocrinol. 2019 May;7(5):344-355.

Dra. Milene Moehlecke
Médica Endocrinologista
CREMERS 33.068 - RQE 25.181