segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Terapia Hormonal para Transgêneros

O QUE É DISFORIA DE GÊNERO
Segundo o “Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders V (DSM-5)”, a Disforia de Gênero (DG) é definida como um desconforto persistente associado ao sexo de nascimento e uma sensação de inadequação com a identidade de gênero a ele atribuída. O indivíduo com essa condição apresenta um forte desejo de viver e ser aceito socialmente como um membro do gênero oposto ao que foi designado e, para tanto, ele busca alinhar a sua aparência com o seu gênero de identidade através de terapia hormonal e de cirurgias.

Nesse contexto, considera-se “mulher transgênero” a pessoa designada ao nascimento como homem, mas que se identifica como mulher e “homem transgênero” a pessoa designada ao nascimento como mulher, mas que se identifica como homem.

Mais recentemente, como forma de “despatologizar” e reduzir estigmas, o termo “Incongruência de Gênero” vem sendo usado em substituição à “Disforia de Gênero”. Alinhado a essa nova nomenclatura, usarei o a sigla DG/IG para me referir a condição.



INCIDÊNCIA
Estima-se que 0,4% a 1,3% da população mundial apresenta DG/IG.
Nos EUA, um amplo estudo recente (2015 US Transgender Survey from National Center for Transgender Equality) mostrou que a incidência de pessoas cuja identidade de gênero difere daquela designada ao nascimento atinge 0,25% da população adulta 4,5% da população jovem.

A DG/IG na infância não continua, necessariamente, na idade adulta. Estudos longitudinais, demonstraram que quando a DG/IG ocorre ou é suspeitada na idade pré-escolar, 85% das crianças voltarão a se identificar com seu sexo biológico. Por outro lado, quando inicia ou persiste durante a adolescência, existe uma grande probabilidade que se mantenha durante a vida adulta.

CAUSAS
A identidade de gênero tem início entre 2-3 anos de idade quando se percebe o interesse da criança por brincadeiras típicas de meninos ou meninas. Entre 6-7 anos, a criança adquire consciência de que seu gênero permanecerá o mesmo ao longo da vida.

Até o momento, a ciência ainda não conseguiu esclarecer qual a causa da DG/IG. É provável que a origem seja multifatorial, uma vez que a experiência de gênero resulta de uma interação complexa entre fatores genéticos, hormonais, sociais, psicológicos, cognitivos e relacionais. Alguns pesquisadores levantaram a hipótese de que a condição resultaria da exposição aos andrógenos nas fases iniciais do desenvolvimento cerebral ainda no útero. Desta forma, a falta de exposição aos andrógenos em um feto masculino resultaria em um indivíduo com identidade de gênero feminina e, inversamente, a exposição aos andrógenos em um feto feminino resultaria em um indivíduo com identidade de gênero masculina.

Estudos recentes sugerem que a condição poderia estar relacionada a alterações anatômicas no cérebro. Uma área sexualmente dimórfica na stria terminalis é tipicamente duas vezes maior em indivíduos designados homens ao nascimento. Os indivíduos transgêneros estudados antes da terapia hormonal possuíam essa região consistente com o gênero de identidade, e não com o sexo biológico.
Gêmeos idênticos compartilham a condição de forma muito mais frequente do que gêmeos fraternos ou irmãos, sugerindo que a genética desempenha um papel importante na etiologia da DG/IG.

CONSEQUÊNCIAS
A DG/IG causa sofrimento emocional significativo e traz prejuízos para o funcionamento social ou ocupacional ou para outras áreas importantes da vida do indivíduo.
Segundo dados levantados nos EUA, a incidência de tentativa de suicídio entre indivíduos transgêneros é da ordem de 41%, enquanto que na população geral não passa dos 1,6%, representando a maior taxa de suicídio entre qualquer condição psiquiátrica.

Os indivíduos transgêneros estão mais expostos a sofrer preconceito e discriminação, o que determina um alto índice de alcoolismo e uso de drogas ilícitas. Além disso, possuem maiores barreiras para obter educação e emprego, causando dificuldade financeira e, por consequência, à moradia e ao atendimento médico primário.

A TERAPIA HORMONAL
A terapia hormonal de feminização ou masculinização (ou “TH cross-sex”) consiste na administração de hormônios que vão proporcionar o desenvolvimento de uma aparência física mais alinhada com a identidade de gênero do indivíduo.

Como é altamente eficaz para induzir o desenvolvimento das características desejadas (relacionadas ao gênero de identidade), ela costuma ser a primeira e eventualmente a única forma de intervenção médica para afirmação de gênero.

PARA QUEM
A “TH cross-sex” está indicada para pessoas com diagnóstico de DG/IG bem documentada e que não apresentam comorbidades psiquiátricas associadas, realizada por profissional da saúde mental treinado. O interessado deve ter maioridade legal e capacidade plena de tomar decisões, bem como de assinar o “Termo de Consentimento Informado” (documento onde toda a informação sobre o tratamento é fornecida em linguagem clara e acessível).

QUEM ORIENTA
Cabe ao médico endocrinologista discutir as possibilidades terapêuticas, orientar o uso correto dos hormônios, avaliar as contraindicações e monitorar o indivíduo visando à redução dos possíveis efeitos colaterais associados à “TH cross-sex”. Antes de prescrever este tipo de terapia ele deve exigir que o interessado leia e assine o “Termo de Consentimento Informado” que serve para registrar que existe um bom entendimento sobre todos os aspectos da “TH cross-sex” e para garantir proteção legal e atendimento de qualidade.

Eventualmente o médico assistente também poderá solicitar um parecer de profissional da saúde mental atestando a DG/IG e/ou a condição de saúde psicológica do indivíduo.
Embora o endocrinologista desempenhe papel fundamental no tratamento de indivíduos com DG/IG, uma equipe interdisciplinar mais ampla, composta por profissionais da saúde mental, cirurgião plástico, ginecologista, urologista, dermatologista, fonoaudiologista, entre outros, precisa ser recrutada e trabalhar em conjunto.

COMO É FEITA
A “TH cross-sex” visa a atingir e manter níveis fisiológicos dos hormônios sexuais relacionados ao gênero de identidade do interessado, afim de garantir o desenvolvimento das características desejadas. Costuma ser muito segura e eficaz, desde que se utilizem substâncias aprovadas e controladas em doses adequadas e individualizadas.

Na TH de FEMINIZAÇÃO, usa-se o hormônio feminino (estradiol) para redução dos pelos faciais e corporais, indução do desenvolvimento de mamas, redução da massa muscular e redistribuição da gordura facial e corporal em um padrão feminino. A forma ideal de administrar o estradiol é pela via transdérmica (gel ou adesivos), embora ele também possa ser administrado sob forma de injeções, pela via oral (comprimidos) ou sob forma de implantes subcutâneos (pellets). O uso do estradiol isoladamente não consegue reduzir a produção de testosterona pelos testículos, sendo necessário associar um medicamento anti-androgênico ao tratamento.

Na TH de MASCULINIZAÇÃO, o hormônio masculino (testosterona) é usado para induzir bloqueio da menstruação, desenvolvimento da barba e dos pelos corporais, engrossamento da voz, aumento da massa muscular e redistribuição da gordura corporal em um padrão masculino.
A testosterona pode ser administrada sob forma de injeções ou sob a forma de gel para absorção transdérmica. O uso da testosterona isoladamente é eficaz para reduzir a produção dos hormônios femininos pelos ovários. 

A evolução do processo será realizada por avaliações clínicas e laboratoriais periódicas. Esse acompanhamento visa assegurar a eficácia e a segurança do tratamento, bem como fazer ajustes na dose dos hormônios.

QUAIS OS BENEFÍCIOS
O acesso ao tratamento hormonal está associado a uma redução da disforia, da incidência de ansiedade, de depressão, de isolamento social e de abuso de álcool e drogas ilícitas.
Além disso, a “TH cross-sex” melhora a sensação de bem-estar, a qualidade de vida e a condição geral de saúde do indivíduo com DG/IG, apresentando um impacto positivo sobre diversos aspectos da vida, como autoestima, socialização, relacionamento, atividade sexual, estudo, trabalho, independência e autonomia financeira, além de contribuir para a redução da experiência de estigma.


FONTES 
1.Endocrine Treatment of Gender-Dysphoric / Gender-Incongruent Persons: An Endocrine Society* Clinical Practice Guideline. Hembree WC, Cohen-Kettenis PT, Gooren L, Hannema SE, Meyer WJ, Murad MH, Rosenthal SM, Safer JD, Tangpricha V, and T’Sjoen GG. J Clin Endocrinol Metab, November 2017, 102(11):1–35.
2. The WPATH SOC - World Professional Association for Transgender Health Standars of Care for the Health of Transsexual, Transgender and Gender-nonconforming People.Coleman E, Bockting W, Botzer M, et al. Int J Transgend 2011; 13:165–232.
3. Guidelines da UCSF - Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People. Madeline B. Deutsch, MD, MPH, University of California, San Francisco, Published June 17, 2016.
American Psychiatric Association - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 5th ed. Arlington, VA: American Psychiatric Association Publishing.
4. Clinical Management of Transsexual Subjects.Costa EMF, Mendonça BB.Arq Bras Endocrinol Metab 2014;58/2:188-196.
5. World Professional Association for Transgender Health (http://www.wpath.org)
6. The Fenway Institute (http://fenwayhealth.org/the-fenway-institute)
7. National Center for Transgender Equality (http://transequality.org)

Dr Leandro Liess
Médico Endocrinologista
CREMERS 18860/ RQE 9694

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