terça-feira, 21 de março de 2017

Doenças da tireoide e síndrome de Down

Vinte e um de março de 2017, comemoramos o Dia Mundial da Síndrome de Down e nada melhor para marcar esta data do que falar sobre os cuidados necessários com os pacientes portadores desta síndrome. Para isso, vamos conversar sobre a tireoide na síndrome de Down (SD), tema frequente nos consultórios de endocrinologia e que pode gerar muitas dúvidas entre os pacientes e seus familiares.
Crianças com SD podem ter uma série de alterações clínicas associadas, incluindo manifestações endocrinológicas. A endocrinopatia mais comum nesses pacientes é a alteração da função da tireoide. Um estudo publicado em 2014 entrevistou 440 crianças com SD no estado de Nova York e encontrou uma frequência de 27,3% de doença da tireoide, sendo que um terço destes casos foi detectado logo depois do nascimento. 
Para facilitar o entendimento, vamos primeiro ver como funciona a tireoide e quais são os exames solicitados pelo médico, depois dividir as alterações nas fases do desenvolvimento da criança (nascimento, infância e adulto) e, por fim, conversar um pouco sobre tratamento.



A Tireoide
A tireoide é uma glândula que se localiza na porção anterior do pescoço, cuja função é produzir dois hormônios: o T3 (triiodotironina) e o T4 (tetraiodotironina ou tiroxina). Estes hormônios agem ativando outras partes do corpo como a pele, para que fique viçosa; o intestino, para que se movimente; o coração, para que bata na frequência correta; o esqueleto, para que a criança cresça; e também o cérebro, para que se desenvolva. A produção desses hormônios é controlada pela hipófise (também conhecida como glândula-mãe) através do TSH ou hormônio tireoestimulante (do inglês thyroid stimulant hormone). Quando a tireoide está funcionando de forma adequada, esperamos encontrar todos estes hormônios dentro de valores normais. De uma forma simplificada, as alterações da tireoide mais comuns na SD acontecem por problemas na sua função, ou seja, na secreção dos hormônios T3 e T4. Quando a tireoide diminui sua produção, o TSH tende a se elevar de forma compensatória. De outra forma, podemos pensar que a hipófise “insiste” mais para que a tireoide produza seus hormônios da forma mais normal possível; isto é o que acontece no hipotireoidismo. Já no hipertireoidismo, há excesso de produção de T3 e T4, o que faz o TSH diminuir de valor também como uma forma de compensação.

Ao nascimento
O hipotireoidismo congênito costuma estar associado a poucos sinais e sintomas ao nascimento. Porém, com o tempo, pode causar atraso do desenvolvimento neurológico e motor em crianças não tratadas. Por este motivo, toda criança é submetida ao teste do pezinho logo na primeira semana de vida, sendo ela portadora ou não da SD. Neste teste são feitos vários exames em uma gota de sangue coletada do calcanhar do recém-nascido, entre eles a dosagem do TSH e, por vezes, também do T4.
Os valores de TSH sugestivos de hipotireoidismo neonatal variam conforme a idade gestacional do recém-nascido e o momento da coleta. De forma geral, valores de TSH maiores que 20 mUI/mL após o terceiro dia de vida devem ser confirmados e  acompanhados de dosagem do T4 para confirmação diagnostica.
Está comprovado que a medida isolada do T4 não é adequada nesta faixa etária e que o TSH deve ser repetido aos 6 e 12 meses de vida nos pacientes com SD pelo risco de vir a desenvolver hipotireoidismo com o passar o tempo. 

Infância
A recomendação é de que a partir de um ano de idade os exames da tireoide sejam realizados de forma anual em pacientes com SD, ou antes se apresentarem sintomas. Os sintomas podem ser constipação, pele e cabelos secos, piora da flacidez, letargia (lentidão) e redução da velocidade de crescimento no hipotireoidismo; ou olhar vívido e assustado, tremores, perda de peso, aumento do número de evacuações por dia e aumento da velocidade de crescimento, sem melhora da altura na vida adulta, no hipertireoidismo. Existe uma situação que chamamos de hipotireoidismo subclínico em que a hipófise consegue produzir a quantidade certa de TSH capaz de “obrigar” a tireoide a secretar quantidades suficientes de T3 e T4. Nesta situação vemos o TSH elevado e o T4 normal. Por este motivo, raramente existem sintomas da falta de hormônio da tireoide. Quando as elevações do TSH são ainda mais discretas nós costumamos considerar como hipertireotrofinemia, uma leve elevação do TSH que pode não ser doença. Segundo Joseph Meyerovitch e colaboradores, se espera um TSH normalmente mais aumentados em crianças com SD.

Adulto
Na década de 1950 a média de vida de uma pessoa com SD era de 12 anos e atualmente é mais de 60 anos. Isto se deve ao maior conhecimento da síndrome e principalmente ao manejo correto de malformações cardíacas. Com esta maior longevidade resta saber se na vida adulta elas continuam com esta frequência aumentada de doenças da tireoide.
Um grupo inglês acompanhou 112 pacientes adultos com SD sem doença da tireoide ao longo de 15 anos e pode observar uma incidência de hipotireoidismo e hipertireoidismo clínico de cerca de 4,8% e de mais de 20% de hipotireoidismo subclínico. Mas a boa notícia é que naqueles que apresentavam pequena elevação do TSH e T4 normal, ao final dos 15 anos, apenas quatro haviam necessitado receber reposição com hormônio da tireoide e metade deles havia normalizado os exames de forma espontânea, sugerindo que na vida adulta o exame de rastreamento de TSH possa ser espaçado para a cada 2-5 anos ou quando o paciente apresentar sintomas.

Como tratar?
A boa notícia é que o tratamento é muito fácil e eficaz no caso do hipotireoidismo. O paciente deve tomar uma dose diária de levotiroxina (o próprio hormônio da tireoide), conforme indicado por seu médico. A melhora dos sintomas é gradual, mas não significa que poderá parar a medicação; na maioria das vezes o tratamento é por toda vida. Ofereça a medicação preferencialmente pela manhã, em jejum, e evite associar no mesmo horário, com remédios que contenham cálcio, ferro, soja ou antiácidos, pois eles diminuem a absorção do hormônio no intestino ("cortam o efeito"). Durante o tratamento é necessário realizar exames laboratoriais periodicamente, para ajuste da medicação. Não se preocupe! Apesar de crônico, o hipotireoidismo é uma doença controlável.
Já no caso do hipertireoidismo existem três opções de tratamento, a primeira e mais fácil é tomar uma medicação de diminua a produção de hormônio pela tireoide, como o tapazol. As outras duas opções são o iodo radioativo e a cirurgia, que é reservada para casos excepcionais. O melhor tratamento é definido de forma individual para cada paciente. Você pode, e deve, conversar com seu médico sobre a melhor opção.

De forma resumida, os pacientes com síndrome de Down têm mais chance de desenvolver doenças da tireoide. Eles também podem apresentar pequenas alterações dos exames que não configuram doença, mas que devem ser acompanhadas de perto pelo médico.
Os links abaixo são sugestões de site de associações de pais e profissional de saúde para esclarecer outras dúvidas sobre o assunto.

- National Down Syndrome Society: http://www.ndss.org/
- National Down Syndrome Congress: https://www.ndsccenter.org/ 
- Canadian Down Syndrome Society: http://cdss.ca/ 
- Down Syndrome International Education: https://www.dseinternational.org/en-gb/

Referências:
1. Roizen NJ, et al. A Community Cross-Sectional Survey of Medical Problems in 440 Children with Down Syndrome in New York State. 2014 The Journal of Pediatrics 164 (4): 871-875.
2. Erlichman I, et al. Thyroxine-Based Screening for Congenital Hypothyroidism in Neonates with Down Syndrome. 2016 J Pediatr 173: 165-168.
3. Bull MJ, et al. Clinical Report-Health Supervision for Children with Down Syndrome, 2011 Pediatrics 128 (2): 393-406.
4. Meyerovitch J et al. Hyperthyrotropinaemia in untreated subjects with Down’s syndrome aged 6 months to 64 years: a comparative analysis. Arch Dis Child 2012; 97: 595-598 
5. Prasher V, et al. Fifteen-year follow-up of thyroid status in adults with Down Syndrome. 2011 Journal of intelectual disability research 55: 392-396

Dra. Leila Cristina Pedroso de Paula
Médica Endocrinologista
CREMERS 21.561 - RQE 16.615

Dra. Roberta Marobin
Médica
CREMERS 38.368


terça-feira, 14 de março de 2017

Chás, fitoterápicos, vitaminas, automedicação e saúde

O uso de suplementos vitamínicos e compostos fitoterápicos (ou naturais) sem receita médica é um fenômeno crescente, resultado da grande oferta e das facilidades de acesso nos dias atuais. A busca pela saúde é a maior justificativa da automedicação nessa área, principalmente na população de idosos. Lembra daquele chazinho que o vizinho indicou para curar o diabetes ou para baixar a pressão? O argumento, em geral, é de que “como é natural, não faz mal…” ou “não é medicamento, é só vitamina ou chá…”.  Mas não é bem assim. Sabemos que esses compostos têm atividade biológica, isto é, provocam reações químicas no organismo que podem desencadear uma série de efeitos. Obviamente, o que buscamos são os efeitos benéficos à saúde, como aliviar um sintoma ou tratar uma doença. Na área de diabetes, por exemplo, perdi a conta dos inúmeros chás e infusões que supostamente poderiam tratar ou até mesmo curar a doença. O que precisamos entender é que se uma substância, mesmo que "natural", tem efeito favorável, certamente algum efeito colateral deve ter. E qual é esse efeito?  É isso que devemos nos questionar...



Não existe uma substância que seja quimicamente ativa, usada como tratamento médico, que não tenha efeitos colaterais. Quando prescrevemos algo, precisamos ter as informações geradas por estudos em milhares de pessoas mostrando as vantagens e os riscos do uso daquela medicação. Mesmo que seja "natural" ou uma vitamina, não temos como garantir se realmente funciona ou se, principalmente, é seguro a longo prazo sem este tipo de avaliação. Temos vários exemplos de como essas substâncias podem fazer mal à saúde.
O chá verde, extrato das folhas da Camellia sinensis, é mundialmente conhecido pelas suas propriedades estimulantes e anti-oxidantes e é um dos chás mais consumidos em todo o mundo. Entretanto, conforme a quantidade ou a predisposição de cada pessoa, se usado por tempo prolongado o chá verde pode ser tóxico para o fígado e causar hepatite aguda. De fato, um artigo recentemente publicado pelo National Institutes of Health (NIH) em associação com a American Association for the Study of Liver Disease alerta que cerca de 20% dos casos de hepatites nos Estados Unidos são causados por consumo de suplementos alimentares e compostos fitoterápicos.
Outro exemplo é a vitamina E, comprada sem receita e usada na forma de suplemento diário. Encontrada em frutas secas, óleos vegetais, cereais integrais e sementes, tem sido usada como suplemento na forma de cápsulas devido às suas propriedades antioxidantes e supostos benefícios na prevenção do envelhecimento, do câncer, da demência e de doenças cardíacas. Mas além desses benefícios não terem sido confirmados, o uso de doses altas de vitamina E (maiores que 400 UI por dia) foi associado a aumento do número de mortes. Hoje em dia, usamos vitamina E em baixas doses somente em pacientes com doença hepática gordurosa em fase avançada e que não tenham diabetes ou doença coronariana.
Um outro ponto associado ao uso de suplementos e fitoterápicos é a sua imprevisível associação com os medicamentos convencionais de uso contínuo. Como não sabemos exatamente como atuam e as suas interações, podem agir inibindo ou intensificando a ação de medicamentos usados para tratar hipertensão arterial, diabetes e alteração da coagulação. Na população de idosos, a preocupação é maior devido às peculiaridades do metabolismo desses indivíduos. Nesse grupo ainda, o uso de fitoterápicos e vitaminas pode colaborar para a chamada "polifarmácia", em que há um grande consumo diário de medicamentos (geralmente acima de 5 tipos ao dia). Como são muitos medicamentos para tomar todos os dias, com frequência ocorrem erros de horários, troca de comprimidos e falhas de tomada. Nesse caso, o uso desnecessário de vitaminas e fitoterápicos pode mais atrapalhar do que ajudar.
Embora vivamos em um país com raízes na medicina natural, devemos ficar atentos ao que estamos consumindo para não criarmos um problema maior. Claro que não precisa deixar de tomar seu chá, mas evite as misturas e os exageros. O mesmo serve para o consumo de vitaminas e polivitamínicos. Será que são mesmo necessários? Sempre questione o seu médico a respeito.  Não é porque é "natural" que não faz mal à saúde. Além disso, a automedicação pode sair mais cara do que você imagina.

Referências:
1- Navarro VJ et al. Liver injury from herbal and dietary supplements. Hepatology 2017; 65(1):363-373.
2- Pitkälä KH et al. Herbal medications and other dietary supplements. A clinical review for physicians caring for older people. Ann Med. 2016; 48(8):586-602.

Dr. Eduardo Guimarães Camargo
Médico Endocrinologista
CREMERS 23.404 - RQE 17.086

sexta-feira, 3 de março de 2017

Gordura interesterificada: a “nova” gordura das margarinas é segura?

No início deste século, evidências científicas incriminando a gordura trans foram se acumulando. A gordura trans é obtida através de um processo industrial chamado de hidrogenação. Os óleos vegetais são ricos em ácidos graxos insaturados. Isto quer dizer que dentro da cadeia carbônica destes ácidos graxos existem várias ligações duplas entre os carbonos (figura 1). Durante a hidrogenação são adicionadas moléculas de hidrogênio a cadeia carbônica do ácido graxo para transformar as ligações duplas em ligações simples (figura 2). Um efeito adverso desse processo é a hidrogenação parcial de algumas das duplas ligações e a “torção” da molécula, formando a famigerada gordura trans.

FIGURA 1. Exemplos de gordura insaturada.

FIGURA 2. Processo de hidrogenação.

Mas por que a indústria gostava tanto de usar a gordura hidrogenada? De uma maneira geral, quanto mais insaturada for uma gordura, maior a probabilidade dela ser líquida. E a indústria alimentícia prefere utilizar gorduras sólidas nos seus produtos, pois além de serem mais estáveis nas altas temperaturas atingidas durante a fritura, garantem consistência mais agradável e maior prazo de validade aos alimentos.
Com cada vez mais órgãos governamentais e entidades de classe se posicionando contra o uso da gordura trans, a indústria alimentícia começou a migrar para um “novo” método para solidificar os óleos vegetais: a interesterificação.
A interesterificação é usada desde a década de 1940. Na natureza, as gorduras se apresentam em “trios” de ácidos graxos ligados a uma molécula de glicerol: são os triglicerídeos (figura 3). Dependendo de qual ácido graxo está na posição 1, 2 ou 3 da molécula do triglicerídeo, suas propriedades físico-químicas podem ser diferentes. Na forma mais comum de interesterificação utilizada pela indústria alimentícia atualmente, conhecida como método enzimático, os ácidos graxos são seletivamente ou randomicamente trocados de posição na molécula do triglicerídeo para que um óleo líquido passe a ser sólido sem o inconveniente da formação da gordura trans. Mas essa manipulação química mantém a gordura própria para consumo? É algo saudável? Esta é uma questão de resposta um pouco complexa…

FIGURA 3. Molécula de triglicerídeos. À esquerda podemos identificar os 3 carbonos da molécula de glicerol.

Primeiramente, mesmo países que historicamente conseguem ter informação epidemiológica apropriada como os Estados Unidos têm dificuldade em calcular o consumo de gordura interesterificada de sua população. Um dos motivos é a rotulagem de muitos produtos ser pouco clara quanto ao tipo de gordura utilizada na sua fabricação. Além disso, no caso da gordura interesterificada, também é importante conhecer quais “gorduras bases” foram usadas na sua fabricação, bem como a descrição do processo, já que a simples descrição da proporção de gordura saturada e insaturada ou a origem ser vegetal ou animal não permite estimar o comportamento biológico dentro do organismo. De qualquer forma, estima-se que o consumo de gordura interesterificada fique entre 1,9 e 4,8% do total energético e suas principais fontes provavelmente são: batatinhas fritas e outros chips, bolachas e pães industrializados, pipocas, margarinas, congelados prontos para fritar (nuggets e empanados, por exemplo), maionese e sorvetes.
Como os dados de consumo populacional são apenas estimados, até o momento grande parte do que se sabe sobre o impacto do consumo das gorduras interesterificadas vem de estudos pequenos, muitos feitos em animais e de curta duração. Além disso, como a gordura interesterificada compreende diversas combinações de ácidos graxos dentro da molécula de triglicerídeo, os resultados destes estudos são extremamente heterogêneos. Outra falha importante destes estudos é não conseguir reproduzir as situações reais de consumo. Isto é, ninguém come gordura interesterificada pura e em níveis até 4 vezes acima do habitual. Mas é assim que alguns estudos tentam avaliar o impacto da gordura interesterificada na saúde…
De qualquer forma, alguns pontos relevantes já foram identificados. Por exemplo, o ácido graxo de está ligado na posição 2 da molécula de triglicerídeo parece ser importante, já que ele pode ser absorvido mais facilmente pelo organismo. Além disso, o comprimento das cadeias dos ácidos graxos que ficam nas posições 1 e 3, nas pontas da molécula, também parece ser importante, já que os saturados de cadeia longa podem ser pior absorvidos quando comparados aos saturados de cadeia média. Dependendo de qual ácido graxo é preferencialmente absorvido a resposta do organismo é diferente com diferentes níveis de triglicerídeos, colesterol, marcadores inflamatórios e mesmo de glicose e de insulina.
Em resumo, até o momento ainda não sabemos se a “substituta da gordura trans” é mais saudável que ela. Para que esta pergunta seja corretamente respondida, além de mais alguns anos de pesquisa, as regras de rotulagem dos produtos alimentícios industrializados precisaram ser revistas. Neste tipo de situação onde não sabemos o real efeito de algo, o princípio da prudência se impõe. Logo, além de dar preferência às fontes naturais saudáveis de gordura (azeite de oliva, por exemplo), o consumidor tem direito de ser bem informado para decidir o que é melhor para si.

Referência:

1- Mensink RP, Sanders TA, Baer DJ, Hayes KC, Howles PN, Marangoni A. The Increasing Use of Interesterified Lipids in the Food Supply and Their Effects on Health Parameters. Adv Nutr. 2016 Jul 15;7(4):719-29. 


Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
CREMERS 30.576 - RQE 22.991

quarta-feira, 1 de março de 2017

Papo sério: Os esteroides anabolizantes e o nosso "relógio suíço"

Desde os anos 70, os esteroides anabolizantes vêm sendo usados de forma abusiva por atletas, fisiculturistas e praticantes de atividade física. Os esteroides androgênicos anabólicos (ou anabolizantes) são hormônios representados pela testosterona e seus derivados, cujos efeitos de aumento de massa muscular e óssea e aumento da capacidade de proliferação celular são empregados em situações médicas muito restritas, como nos casos de desnutrição grave causada por câncer e AIDS. Essas substâncias hormonais também são empregadas para suprir as necessidades daqueles que as deixam de produzir, como nos casos de hipogonadismo e atraso puberal. Entretanto, o seu uso indiscriminado e crescente, sem indicação clínica, particularmente em adolescentes e adultos jovens, tem chamado a atenção das principais sociedades médicas mundo afora, principalmente aquelas ligadas a programas antidoping, que alertam sobre os riscos à saúde decorrente da exposição de terapias anabolizantes.



De fato, as propriedades “milagrosas” dos esteroides anabolizantes começaram a chamar a atenção a partir dos surpreendente ganho de força e massa muscular de atletas de alto nível, o que garantia um desempenho muito superior quando comparado com aqueles que não usavam. Não demorou muito para essas substâncias alcançarem as academias, as farmácias e alguns consultórios médicos.
Na chamada "medicina estética e antienvelhecimento", hormônios androgênicos esteroides, o hormônio da tireoide e o hormônio do crescimento  (GH), que normalmente são usados somente para reposição em situações de deficiência comprovada, são indicados precoce e erroneamente com intuito de retardar o envelhecimento, aumentar o metabolismo, aumentar a massa muscular, reduzir a gordura corporal, melhorar a textura da pele e a libido. Nesses casos, são usados hormônios sem a real necessidade e em doses muito acima do recomendado. Claro que isso faz mal para o organismo!
Termos como “bio-idêntico” ou “nano-hormônio” são usados inescrupulosamente para criar uma falsa ideia de pureza e segurança, o que obviamente não existe. Disparado, a testosterona e seus derivados (ex. oxandrolona, oximetolona, estanazolol, di-hidrotestosterona) são os líderes em uso justamente por suas fortes propriedades anabolizantes, sua facilidade de encontrar e o seu baixo custo.  Mas você sabe qual o efeito que o uso dessas substâncias terá no seu organismo?
Bem, nosso sistema endócrino é um "relógio suíço", onde tudo funciona da melhor maneira para nos manter em equilíbrio. Nossos hormônios, quando estamos saudáveis e sem doenças, são produzidos na quantidade exata das nossas necessidades, nem um gota a mais. Quando um homem usa um esteroide por estética, para aumento de massa muscular, esse sistema é inibido. Sim, porque o nosso sistema hormonal funciona assim: para tentar evitar o excesso deletério, as glândulas deixam de produzir aquele hormônio que está sendo administrado. No caso do uso da testosterona, por exemplo, os testículos deixam de produzir a própria testosterona enquanto a pessoa estiver usando. Esse uso, geralmente em doses acima do que o corpo está habituado (para ter uma ideia: a dose de reposição para quem não produz testosterona é 1 injeção a cada 14 dias; em ciclos anabolizantes, tem gente usando 1 injeção ao dia!), cria um "falso ambiente hormonal", o que estimula forçadamente as células do corpo a proliferar e crescer de tamanho. Se eu tinha um massa muscular "x" produzindo "y" de testosterona, agora com "4y" de testosterona terei uma massa muscular "4x". Parece maravilhoso! Mas o problema é que isso só se mantém enquanto estivermos usando essas doses altas. Quando reduzimos ou interrompemos o uso, que geralmente é o que ocorre quando se termina o chamado ciclo, voltamos a ser o que éramos: "x"! E um "x" que agora não consegue produzir a sua própria testosterona, pois os testículos podem demorar para trabalhar de novo. Esse estado de não produção dos próprios hormônios nós chamamos de hipogonadismo. E é nesse período, conforme o tempo que foi usado e retirado o anabolizante, que o organismo sente muito a falta dos hormônios, gerando perda grande da muscular conquistada, cansaço intenso, fraqueza, humor deprimido, impotência e falta de libido.
Esse é um ponto crucial! O que a maioria faz: 1) se convence que é um efeito colateral do tratamento e mata no peito os sintomas; 2) busca atendimento médico para entender os sintomas e tratá-los; 3) volta a usar o anabolizante. Na minha experiência de consultório, infelizmente a maciça maioria escolhe a opção 3. Voltam a usar e os sintomas imediatamente melhoram; voltam a ficar grandes e potentes, com libido lá em cima. E daí passa ser um ciclo atrás do outro, sempre com alguma alternativa indicada por um amigo ou médico para tentar evitar os efeitos da parada. “Ah, mas eu quero usar uma dose bem baixa, só para dar uma estimulada…” Não adianta, pois só vai ter os efeitos de supressão da testosterona sem ter o resultado de crescimento muscular.
Não importa se você compra na academia ou na farmácia sem receita ou se recebeu receita de um médico. Para ter o efeito anabolizante, você sempre terá que usar doses acima do necessário. Aliás, não se iluda se esse tipo de tratamento estiver sendo feito por um médico que garanta que é seguro. O ego de muitos médicos sempre supera (e muito) o bom senso. São pseudo-inovadores, sedutores, manipuladores, super-stars das redes sociais, revolucionários inconsequentes, messiânicos que se colocam acima da boa prática médica e das entidades médicas sérias, oferecendo tratamentos que não tem suporte de segurança pela boa literatura médica. Por favor, não se iluda!
Mas mesmo assim quer usar? Saiba então os efeitos adversos do uso dos esteroides anabolizantes: alterações dermatológicas (acne, lipodistrofia – atrofia da gordura, abscessos musculares, hematomas, calvície, estrias, excesso de pelos corporais), hematológicas (aumento do número dos glóbulos vermelhos, sangue mais viscoso), alterações sexuais (impotência, ginecomastia, atrofia testicular, infertilidade), osteo-musculares (hérnia de disco, lesões meniscais, rabdomiólise-dano muscular grave), hepáticas (hepatite, colestase, icterícia -amarelão, esteatose, nódulos, câncer de fígado), renais (insuficiência renal, glomerulonefrite), cardiovascular (redução do colesterol HDL, AVC, hipertensão arterial, aumento do volume do coração, insuficiência cardíaca, arritmia, infarto, morte súbita) e comportamentais (agressividade, comportamento imprudente e compulsivo, dependência, síndrome de abstinência, depressão, pensamentos suicidas, percepção alterada da forma corporal, maior consumo de álcool e outras drogas, transtornos alimentares tipo vigorexia, bulimia, anorexia, prática de sexo inseguro). Além disso, existem vários relatos de câncer associado ao uso de anabolizantes, como câncer de fígado, de pâncreas, miossarcoma, osteossarcoma, linfoma e leucemia.
Em mulheres, os efeitos hormonais são resultado da exposição do organismo a um hormônio caracteristicamente masculino e em quantidades muito altas. O resultado é que a testosterona passa a modificar o corpo feminino trazendo traços masculinos, que é o que chamamos de virilização (ou masculinização). Aumento exagerado da massa muscular, acne, redução anormal da gordura corporal, lipodistrofia, atrofia das mamas, excesso de pelos no rosto e no corpo, aumento do gogó, voz masculinizada, parada da menstruação, engrossamento da pele, aumento do clitóris e infertilidade. Além de todos os efeitos colaterais já citados.
A saúde não é brincadeira. Respeite o seu "relógio suíço". Não se exponha a tratamentos que podem trazer riscos desnecessários. E principalmente, não coloque a sua saúde nas mãos de inconsequentes, seja um amigo, o cara da academia ou da farmácia, o cara que traz da fronteira, um médico. Ninguém se responsabilizará por você se algo der errado.

Referências:
1 - Eberhard Nieschlag, Elena Vorona. Doping with anabolic androgenic steroids (AAS): Adverse effects on non-reproductive organs and functions. Rev Endocr Metab Disord 2015. DOI 10.1007/s11154-015-9320-5
2 - WADA worldwide antidoping network (www.wada.org).

Dr. Eduardo Guimarães Camargo
Médico Endocrinologista
CREMERS 23.404 - RQE 17.086