domingo, 31 de março de 2019

Anticoncepcionais e mudanças na composição corporal: existe alguma evidência consistente de piora de massa muscular?

Atualmente, percebemos em muitas mulheres que frequentam academias uma preocupação em relação ao uso de método anticoncepcional e o receio de piora na composição corporal, e somos questionados se os contraceptivos hormonais teriam o potencial de reduzir a massa magra conquistada com exercícios de resistência, como a musculação. Sendo assim, é importante entender se realmente existe alguma evidência robusta de que esse pode ser um efeito colateral dessa classe de medicamentos.


Na literatura, são poucos os estudos de boa qualidade que abordam esse tema. Um estudo de coorte observacional que acompanhou 48 mulheres por 12 meses, com IMC na linha de base normal, observou que após um ano de uso de anticoncepcional oral (contendo estradiol micronizado e acetato de nomegestrol) não houve diferença em relação ao peso, IMC, relação cintura-quadril e todos os parâmetros de composição corporal. Outro estudo de coorte prospectivo comparou peso e composição corporal de 149 mulheres saudáveis usando o dispositivo intrauterino de levonorgestrel (DIU de LNG), dispositivo intrauterino de cobre (DIU de cobre) ou implante de etonogestrel (implante ENG), e demonstrou que, embora tenha ocorrido aumento da massa corporal magra durante 12 meses em usuários de DIU de LNG e de DIU de cobre, e não em usuários de implantes ENG, mudanças no peso corporal e na composição corporal não diferiram significativamente entre os grupos. Esses achados também foram observados em um outro estudo que incluiu pacientes obesas, no qual não se encontrou diferença em relação às usuárias de métodos contraceptivos hormonais combinados. 
Em relação ao acetato de medroxiprogesterona de depósito (contraceptivo injetável trimestral), um estudo que comparou seu uso com o DIU de cobre mostrou aumento de massa gorda com usuários de medroxiprogesterona. Esse mesmo trabalho, porém, observou que o número de mulheres praticantes de atividade física aumentou no grupo de usuários do DIU, podendo ter confundido os resultados. Outro estudo que também comparou esses dois métodos, mostrou que no grupo usuário de medroxiprogesterona ocorreu aumento significativo de peso, IMC, superfície corporal, massa livre de gordura e massa gorda, corroborando esse achado. Já um terceiro estudo, que analisou o uso desse mesmo fármaco em mulheres pós parto, mostrou desfecho oposto - não detectou diferença na composição corporal até um ano de uso do puerpério. 
O que podemos concluir dos estudos realizados para avaliação de composição corporal e o uso de métodos contraceptivos é que todos têm diversas limitações, são estudos observacionais, com número restrito de participantes, e com pouco tempo de seguimento - no máximo 12 meses, que pode ser uma razão para não se encontrar diferença entre os grupos. Dos estudos analisados, apenas o uso de medroxiprogesterona se relacionaria com mudança da composição corporal e aumento de massa gorda, porém um dos estudos que apresentou esse desfecho continha o viés do grupo controle ter apresentado maior numero de participantes que iniciaram atividade física. Por fim, podemos afirmar que esse é um assunto em que ainda possuímos dados limitados na literatura, mas que até o momento podemos concluir que não existem estudos confiáveis que comprovem evidência de piora da composição corporal com uso de anticoncepcionais hormonais, não tendo razão para interrupção do método contraceptivo por receio desse efeito.

Referências:
1. Mayeda ER, Torgal AH, Westhoff CL. Contraception. Weight and body fat changes in postpartum depot-medroxyprogesterone acetate users. 2013 Jul.
2. Mayeda ER, Torgal AH, Westhoff CL. Weight and body composition changes during oral contraceptive use in obese and normal weight women. J Womens Health (Larchmt). 2014 Jan.
3. Dal'Ava N, Bahamondes L, Bahamondes MV, Bottura BF, Monteiro I. Body weight and body composition of depot medroxyprogesterone acetate users. Contraception. 2014 Aug.
4. dos Santos Pde N, Modesto WO, Dal'Ava N, Bahamondes MV, Pavin EJ, Fernandes A. Body composition and weight gain in new users of the three-monthly injectable contraceptive, depot-medroxyprogesterone acetate, after 12 months of follow-up. Eur J Contracept Reprod Health Care. 2014 Dec.
5. Batista GA, Souza AL, Marin DM, Sider M, Melhado VC, Fernandes AM, Alegre SM. Body composition, resting energy expenditure and inflammatory markers: impact in users of depot medroxyprogesterone acetate after 12 months follow-up. Arch Endocrinol Metab. 2017 Jan-Feb.
6. Silva Dos Santos PN, Madden T, Omvig K, Peipert JF. Changes in body composition in women using long-acting reversible contraception. Contraception. 2017 Apr.
7. Neri M, Malune ME, Corda V, Piras B, Zedda P, Pilloni M, Orani MP, Vallerino V, Melis GB, Paoletti AM. Body composition and psychological improvement in healthy premenopausal women assuming the oral contraceptive containing micronized estradiol (E2) and nomegestrol acetate (NOMAC). Gynecol Endocrinol. 2017 Dec.

Dra. Camila Jardim de Almeida
Médica Residente de Endocrinologia do Hospital São Lucas da PUCRS
CREMERS 39.824

Dra. Luciana Dornelles Sampaio Péres
Médica Endocrinologista
CREMERS 34.995 - RQE 29.637

terça-feira, 19 de março de 2019

Tratamento do diabetes - melhor com o especialista

Grande parte dos pacientes com diabetes mellitus não recebe tratamento apropriado. Segundo a American Diabetes Association (ADA), são considerados indicadores de qualidade da assistência:
- proporção de pacientes com bom controle glicêmico (hemoglobina glicada abaixo de 8 ou 10 por cento)
- exame de fundo de olho anual
- avaliação dos pés anual
- proporção de pacientes com adequado controle da pressão arterial
- avaliação para complicações renais anual
- avaliação do perfil lipídico (colesterol e triglicerídeos) anual
- aconselhamento quanto ao tabagismo
- avaliação da adesão ao adequado controle da glicemia capilar (testes de ponta de dedo)
- satisfação do paciente
Em outras palavras, na lista acima, temos o mínimo que um paciente com diabetes deveria receber de tratamento. Infelizmente, não é o que se observa na prática.


Existem diversas razões para a grande discrepância entre o que deveria ser feito e o que de fato é...
- O sistema de saúde e mesmo a formação médica são moldados para responder rapidamente a problemas agudos, mas deixam a desejar no manejo de doenças crônicas: caso do diabetes. 
- Alguns profissionais deixam de fazer ajustes no tratamento frente a alterações clinicamente significativas no quadro do paciente - é a "inércia terapêutica". Contribuem para isso: desconhecimento ou pouca percepção das metas terapêuticas, relutância em tratar condições assintomáticas, preocupação do paciente com a quantidade de remédios ou seus efeitos adversos, consultas com tempo reduzido e priorização no tratamento de queixas agudas frente ao manejo dos fatores de risco. Em um estudo realizado na Suíça, apenas 2/3 dos pacientes diabéticos com controle glicêmico ruim (hemoglobina glicada acima de 8 por cento) tiveram seu tratamento ajustado dentro de um período de 18 meses.
- O acesso a sistemas organizados de tratamento ainda é precário. Pacientes com diabetes que acompanham com equipes especializadas tendem a ser melhor controlados.
E aqui chegamos ao ponto!
Apesar da maioria (até 90 por cento) dos pacientes diabéticos do tipo 2 não fazerem seu acompanhamento com endocrinologistas, diversos estudos apontam para melhores resultados quando um especialista ou equipe coordenada por especialista em diabetes é responsável pelo manejo. Nos casos mais complicados ou quando há necessidade do uso de insulina, isto é ainda mais perceptível.
Especialistas em diabetes preocupam-se mais com os indicadores de qualidade da assistência (exame de fundo de olho, exame dos pés, dosagem da hemoglobina glicada, rastreamento para doença renal, avaliação dos níveis de colesterol e triglicerídeos, vacinação...), além de ajustarem o tratamento mais rapidamente quando há necessidade. Em um estudo, 73 por cento dos pacientes acompanhados por endocrinologistas preenchiam completamente os indicadores de qualidade de assistência. Já os acompanhados por não especialistas, apenas 52 por cento.
Existem muitas pessoas diabéticas no Brasil - cerca de uma em cada dez! Se é o seu caso, procure, sempre que possível, por médicos endocrinologistas ou serviços especializados. A qualidade do atendimento prestado faz muita diferença na sua qualidade de vida.

Referências:
1- Lutfiyya MN, McCullough JE, Mitchell L, Dean LS, Lipsky MS. Adequacy of diabetes care for older U.S. rural adults: a cross-sectional population based study using 2009 BRFSS data. BMC Public Health. 2011;11:940. Epub 2011 Dec 16. 
2- Wagner EH, Austin BT, Von Korff M. Organizing care for patients with chronic illness.    Milbank Q. 1996;74(4):511. 
3- Rodondi N, Peng T, Karter AJ, Bauer DC, Vittinghoff E, Tang S, Pettitt D, Kerr EA, Selby JV.  Therapy modifications in response to poorly controlled hypertension, dyslipidemia, and diabetes mellitus. Ann Intern Med. 2006;144(7):475. 
4- Pimouguet C, Le Goff M, Thiébaut R, Dartigues JF, Helmer C.  Effectiveness of disease-management programs for improving diabetes care: a meta-analysis. CMAJ. 2011 Feb;183(2):E115-27. Epub 2010 Dec 13. 
5- Verlato G, Muggeo M, Bonora E, Corbellini M, Bressan F, de Marco R. Attending the diabetes center is associated with increased 5-year survival probability of diabetic patients: the Verona Diabetes Study. Diabetes Care. 1996;19(3):211.
6- Ho M, Marger M, Beart J, Yip I, Shekelle P.  Is the quality of diabetes care better in a diabetes clinic or in a general medicine clinic? Diabetes Care. 1997;20(4):472. 

Dr. Mateus Dornelles Severo
Médico Endocrinologista
Doutor e Mestre em Endocrinologia - UFRGS
CREMERS 30.576 - RQE 22.991

domingo, 17 de março de 2019

Pílulas anticoncepcionais engordam?

Os contraceptivo hormonal surgiu no século XX e é composto de combinações de hormônios esteroides derivados do estrogênio e da progesterona. Esta medicação acabou por tornar-se um dos métodos contraceptivos preferidos pelas mulheres por ser prática, não invasiva e altamente eficaz na prevenção de gestação. Além disso, os anticoncepcionais têm bom perfil de segurança, desde que respeitadas as contraindicações, e possuem diversos outros efeitos benéficos comprovados para a saúde, tais como a prevenção de alguns tipos de câncer como o de ovário e endométrio, regularização do ciclo menstrual, redução de sinais e sintomas de hiperandrogenismo, entre outros.


No entanto, a preocupação com os efeitos colaterais é sempre uma constante. Entre eles, o ganho de peso se mostra como um dos mais populares receios. Para muitos médicos e pacientes, o ganho de peso causado pelos anticoncepcionais é uma verdade inquestionável. De fato, existe um substrato teórico que justifica essa preocupação. Os estrógenos podem ocasionar retenção de fluidos devido a possível  efeito mineralocorticoide do etinilestradiol e alguns estudos sugerem aumento de gordura subcutânea, principalmente em seios, coxas e quadris. Também há possível propriedade anabólica da combinação hormonal, resultando em um aumento da ingesta alimentar por alterações do apetite. 
Diversos estudos já foram realizados para tentar esclarecer essa dúvida. Mas, primeiramente, deve-se destacar que nem todos eles são de boa qualidade técnica. Esse problema, em parte, pode ser justificado por algumas dificuldades metodológicas, como por exemplo, a existência de inúmeros tipos de formulações de anticoncepcionais, com diferentes dosagens e diferentes combinações de estrógenos e progestágenos. Além disso, estudos com placebo também são difíceis de realizar neste contexto, visto que pode ser antiético deixar mulheres em idade fértil sem contracepção efetiva. Soma-se a isso, o fato de a maioria dos estudos ser de curta duração e não ter sido desenhado especificamente para avaliação do ganho de peso como desfecho primário.
Uma revisão sistemática e metanálise que reuniu  49 estudos, realizados com diferentes tipos de anticoncepcionais, desde a década de 70 (quando eram usados doses muito maiores de estrogênio nas formulações) até os dias atuais,  mostrou uma tendência a um pequeno ganho de peso, mas isso não foi estatisticamente significativo. Ademais, avaliando isoladamente os poucos estudos que comparam anticoncepcionais a placebo, também não houve diferenças significativas.
Portanto, pelo que dispomos atualmente de literatura científica a respeito do assunto, não há evidência suficiente para determinar o real impacto dos contraceptivos sobre o peso, mas os estudos excluem que os mesmo sejam responsáveis por grandes variações de peso, mas não, por pequenas variações.

Referências:
1- Fritz, M. A., & Speroff, L. Endocrinologia Ginecológica Clínica e Infertilidade,  8ª Ed. Revinter, 2014. 
2- Vilar L, et al. Endocrinologia Clínica, 6ª Ed. Guanabara Koogan, 2016.
3- Gallo  MF, Lopez  LM, Grimes  DA, Carayon  F, Schulz  KF, Helmerhorst  FM. Combination contraceptives: effects on weight. Cochrane Database of Systematic Reviews 2014, Issue 1. Art. No.: CD003987. DOI: 10.1002/14651858.CD003987.pub5

Dra. Thais Reis Gonçalves
Médica Residente de Endocrinologia do Hospital São Lucas da PUCRS
CREMERS 40.801

Dra. Luciana Dornelles Sampaio Péres
Médica Endocrinologista
CREMERS 34.995 - RQE 29.637

terça-feira, 5 de março de 2019

Tratamento do diabetes mellitus tipo 2: terapias baseadas no GLP-1

O GLP-1 é um hormônio produzido no intestino em resposta aos nutrientes da alimentação. Entre seus efeitos estão:
- auxilia o pâncreas a regular os níveis de glicose (açúcar no sangue);
- faz o estômago esvaziar mais lentamente;
- diminui o apetite.
Os pacientes com diabetes mellitus tipo 2 têm níveis mais baixos de GLP-1. Por isso, a indústria farmacêutica desenvolveu remédios baseados nesta substância.



Quais são e como funcionam os remédios baseados no GLP-1?

São duas classes de remédios:
Agonistas do GLP-1: são medicamentos injetáveis que imitam a função do GLP-1 no nosso organismo. Estão disponíveis no mercado o exenatide (Byetta), o liraglutide (Victoza), o lixisenatide (Lyxumia) e o dulaglutide (Trulicity).
Inibidores da DPP-4 (gliptinas): são medicamentos usados por via oral (comprimidos) que fazem o GLP-1 produzido por nosso organismo durar mais tempo. No mercado brasileiro estão disponíveis a vildagliptina (Galvus), a sitagliptina (Januvia), a saxagliptina (Onglyza), a linagliptina (Trayenta) e a alogliptina (Nesina).

Quais as vantagens dos tratamentos baseados no GLP-1?

As principais vantagens desses medicamentos são que não aumentam (gliptinas) ou ajudam a perder peso (exenatide e liraglutide) e o baixo risco de hipoglicemias (queda da glicose). Além disso, nos estudos disponibilizados até o momento, foram considerados seguros quando comparados ao tratamento convencional. Alguns agonistas no GLP-1 (liraglutide e semaglutide) mostraram-se benéficos na prevenção de desfechos cardiovasculares em pacientes de alto risco.

Quais as desvantagens dos tratamentos baseados no GLP-1?

Como são remédios relativamente novos, dados de eficácia (prevenção de complicações do diabete como cegueira, amputações, insuficiência renal crônica, infarto do miocárdio, acidente vascular encefálico...) e segurança (se o remédio causa potenciais efeitos adversos graves a médio e longo prazo) ainda não estão completamente disponíveis para todos os perfis de pacientes.
Apesar de pouco frequentes, existem relatos de efeitos adversos graves, entre eles pancreatite aguda (principalmente com análogos do GLP-1) e descompensação de insuficiência cardíaca congestiva (alguns inibidores da DPP-4).
Outra desvantagem é o custo elevado quando comparado a outros tratamentos para o diabetes.

Fonte:
1- Dungan K. Glucagon-like peptide-1 receptor agonists for the treatment of type 2 diabetes mellitus. UpToDate.

Dr. Mateus Dornelles Severo
Médico Endocrinologista
Doutor e Mestre em Endocrinologia - UFRGS
CREMERS 30.576 - RQE 22.991
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